Poesia Popular em Festa no Mercado do Bolhão
No mês dos Santos Populares e na semana em que se celebrou Camões, figura central da literatura e da construção da identidade nacional – no sábado dia 14 de Junho, as Bozes Boadoras no Bolhão (BBB) juntam-se a este espírito de celebração da língua portuguesa, com uma sessão dedicada aos santos populares, que abraçou riqueza da poesia popular em todas as suas formas, não descurando a poesia autoral que recorre a outros recursos estruturais, semânticos e estilísticos, para dar força e beleza à mensagem poética.
Dar palco à poesia e aos poetas populares
A poesia popular e as rimas em especifico, não constituem qualquer desprimor para outros géneros poéticos: Fernando Pessoa escreveu um extenso número de quadras populares e até o “hermético” Herberto Helder, não só colecionava quadras populares, nomeadamente de cariz amoroso e até erótico, como as transfigurava na sua poesia.
A este propósito, de sombra erudita sobre a poesia popular, António Carlos Cortez, que para além de poeta, professor de Literatura Portuguesa, é colaborador permanente do Jornal de Letras e das revistas Colóquio-Letras e Relâmpago, interroga: "Poesia erudita? Poesia popular? Importa essa distinção? Sendo um acto de cultura, tal como poetas da estirpe dum António Aleixo ou dum Quim Latote, haverá necessidade de distinguir esta poesia de outras que, mais assentes numa memória dos livros, dizemos que é “poesia culta”? Cesário Verde ou, para irmos a um seu mestre e contemporâneo, João de Deus, não têm eles qualquer coisa de poesia popular, isto é, de expressão literária atenta ao povo, aos modos como o povo se exprime?”
Sem necessidade de justificação, a terceira sessão das BBB foi dedicada à poesia popular cheia de oralidade, rima e ritmo. Curta na duração, mas profunda na intenção, prestamos homenagem a quatro poetas populares: Zé Gigas, J.M. Alexandre Alves, António Domingues Ventura e Dimas Lopes da Silva.
Zé Gigas: Arquiteto de rimas e versos
Zé Gigas - poeta popular é o heterónimo de José Gigante, arquiteto e professor, com um perfil académico se cruzou com varias universidades em Portugal e na Europa. A sua Antologia poética, que reúne 256 poemas escritos entre 1962 e 2017, foi publicada pelo Circo de Ideias. Entre as leituras dessa coletânea, destacam-se quadras que capturam retratos da sua vida pessoal, da sua relação com a cidade e, claro, com a tradicional Festa de S. João; como esta que evoca o espírito do bailarico e a tradição do manjerico:
Pisei-te no bailarico
só pra te pedir perdão.
Não se cheira o manjerico
sem antes lhe pôr a mão.
Ou esta quadra que usa o cenário urbano para refletir sobre a liberdade e valores que marcam a sua trajetória:
Calcorreando a cidade
meu coração vê se atinas
que a palavra liberdade
brilha em todas as esquinas
J. M. Alexandre Alves: Um fazedor de Versos com os pés na terra
Nascido em Vila Real de Santo António em 1944, J. M. Alexandre Alves, vive em Portimão, diz de si próprio: "Sem falsa modéstia, não me considero Poeta. Quem como eu, calca conhecidas veredas, não pinta a palavra, nem coreografa a escrita, não pode ser considerado Poeta. É sim um “fazedor de versos”.
Voltando às palavras de António Carlos Cortez, que prefaciou ambos os livros de J. M. Alexandre Alves ("Puro Malte", edições Húmus, 2021 e Ventos Galernos (no prelo)), escreve no prefácio: "este poeta da tradição oral-popular tem um pé, ou dois, na poesia dita culta. Insisto, em todo o caso no óbvio: tudo é cultura. No caso da arte da poesia, a questão é que as palavras sempre regressam donde partiram: ao fundus telúrico, à terra, à autêntica forma dum falar e dum fazer. Só por aí direi que sim, que J. M. Alexandre Alves cabe nessa tradição dos poetas populares, de Aleixo, convocado em epígrafe, a outros como Alberto Janes, que escreveu para Amália"
No que já se tornou um gesto comum, nas sessões das BBB, as quadras de J. M. Alexandre Alves, foram distribuídas e lidas pelo público presente. Esses pequenos cartões de papel, não são apenas uma lembrança da sessão, são também o fragmento de uma obra poética de um poeta, que assim ganha mais visibilidade e reconhecimento.
Destacamos duas das quadras lidas, pela sua irreverência, ironia e uso da poesia como instrumento de reflexão e comentário social:
Tens de ir já para a cadeia,
Roubaste vinho a granel,
Pois a lei cá só premeia,
Quem roubar todo o tonel.
E ainda:
Se pelo que fazem mal,
Apanhassem umas reguadas,
Políticos de Portugal,
Andavam com as mãos inchadas.
Homenagem ao Concurso de Quadras Populares do Jornal de Notícias
Em mês de Santos Populares, a sessão prestou homenagem ao histórico Concurso de Quadras Populares de São João, promovido pelo Jornal de Notícias desde 1929.
Foram relembrados dois poetas - Dimas Lopes de Almeida e António Domingues Ventura - ambos falecidos em 1994, concorrentes assíduos e premiados pelo JN, desde os anos 50, deixaram um espólio e uma marca indelével ligado a esta iniciativa quase centenária.
Sobre o Concurso do JN, Dimas Lopes de Almeida considerava-o, "o mais importante concurso de trovas do pais”, fundamental para o “enriquecimento do Cancioneiro Português".
O poeta, que nasceu em Sandim, Vila Nova de Gaia em 1935, descreve-se deste modo:
Nasci pobre certo dia,
Mas seguindo a estrada recta
Por nenhum bem trocaria
O dom de humilde poeta.
A sua obra reflete a sagacidade da sabedoria popular fruto da observação critica e da experiência de vida. O amor pelo livros e pela leitura moldou a sua cultura literária e sustentou a sua extensa produção poética.
Foi premiado em diversas modalidades poéticas, cultivando em particular a trova, que considerava “As Meninas dos Meus Olhos”. Foi este o titulo adotado pelas filhas, no livro que reúne parte da sua obra, publicado em 2024 através da Editora Estratégias Criativas.
Deste livro que foram escolhidas e lidas, pelo familiares presentes, várias quadras, premiadas no concurso do Jornal de Noticias e cujo teor revela o ambiente social e político em Portugal. Em 1953, ganhou o 3º Prémio com a quadra:
É melhor ficar calado
do que dizer mal de alguém
o balão morre queimado
só pela boca que tem.
Em 1978, após queda da ditadura e a conquista da liberdade expressão, ganhou o 1ºpremio com seguinte quadra:
Cá vou na rusga contente
Porque esta noite a cidade
Mais do que um rio de gente
É um mar de humanidade.
António Domingues Ventura: Olhar o mundo em redondilha maior
António Domingues Ventura nasceu em 1934, no bairro histórico de Miragaia. Interrompeu os estudos na Escola Superior de Belas Artes, para exercer funções na Alfândega do Porto.
Ávido leitor de clássicos da literatura e da banda desenhada, a sua obra, reunida em edição de autor, sob o título “Quadras e Poemas (1990), constitui-se como um bom exemplo de técnica apurada na redondilha maior, com um olhar crítico, de triste a cómico, da História e das pequenas histórias do país, condensadas em quadra popular.
Em 1958, ganhou o 1º Prémio do JN com a quadra:
Coração sem ter ciúme
Nunca pode ser meu par:
Fogueira com pouco lume
Não me convida a saltar!...
Em 1971, em plena primavera marcelista, falava já da autodeterminação e liberdade dos amantes, obtendo um 2º prémio no certame:
Deixa falar quem desdenha
Da fogueira que acendemos.
Tu deste o lume, eu a lenha,
Ao mundo nada devemos!...
Já em 1976, num período em que o espírito de abril se sentia com intensidade, ganhou o 2º Prémio com uma quadra que reflete o fervor da mudança social:
S. João! Comparo o Povo
De cravo ao peito a cantar,
À força do vinho novo,
Quando ferve no lagar!
O tributo das BBB, ainda que modesto reafirmou a importância das quadras populares como espelho da sociedade e da cultura popular, preservando a memoria dos poetas que ajudaram a construir o panorama literário nacional.
A “Boz” do Porto que quer abraçar todas as vozes da lusofonia
As Bozes Boadoras assumem-se como um espaço de celebração da diversidade poética, onde a voz portuense – com o seu sotaque irreverente, trocando o “V” pelo “B” – simboliza a autenticidade, mas não exclui outras vozes. Pelo contrário: nesta sessão, contaremos com a participação do poeta e professor Wilson Alves-Bezerra, da Universidade Federal de São Carlos (Brasil), no âmbito de um intercâmbio com a revista literária brasileira Ruído Manifesto.
Através deste intercâmbio “iremos poder levar a voz de poetas portuguesas até ao outro lado do Atlântico e de lá trazer novas vozes da poesia brasileira”
É mais um incentivo para que vozes poéticas “invisíveis”, se possam dar a conhecer quer no palco do Bolhão, quer noutras plataformas da Lusofonia.